3 de mai. de 2010

Adoráveis obscuras


Adoro escutar cantoras obscuras. Tenho total prazer em conhecer aquela cantora que ao ter seu nome mencionado, faça o interlocutor colocar aquela cara de paisagem e dizer que não conhece. O prazer é maior principalmente quando se trata de uma artista que, apesar da obscuridade, possui carreira longeva, muitos discos gravadas, prestígio entre críticos e colegas músicos. Dessa longa lista posso mencionar Ná Ozzetti, Mônica Salmaso, Marlui Miranda, Ceumar, Fabiana Cozza e tantas outras cantoras que nunca chegaram (provavelmente não vão chegar) às paradas de sucesso.

Porém, muito acima dessas, que afinal ainda estão em atividade, existe um prazer no cavucar daqueles nomes que já se esqueceram no tempo, na memória até daqueles que, por amor à música ou à pesquisa, costumam fuçar lá no fundo do baú.

Tudo começou numa livraria, quando descobri um livro importantíssimo, embora às vezes bem superficial: A Enciclopédia da Música Brasileira, da Art Editora. Trata-se de um livro enorme, com verbetes reunindo não só nomes de artistas da música brasileira de quase todas as tendências, sejam populares ou eruditas, como também gêneros musicais, danças, etc. Foi através dos verbetes desse livro que descobri que, além de Carmen Miranda, Aracy de Almeida e mais alguns nomes consagrados, existia uma legião de artistas, homens e mulheres que eu nunca tinha ouvido falar! Comecei a ouvir esses artistas através do mais fantástico site existente para os amantes de MPB da era do 78 rpm, que é o site do Instituto Moreira Sales, que possui um arquivo de áudios incrível, que vai desde os prmeiros discos feitos no Brasil nos idos de 1902 até os últimos 78 RPM fabricados em início da década de 60, de nomes como Elis Regina, Miltinho, Elza Soares e João Gilberto. Foi através desse site que pude conhecer as vozes daquele monte de cantoras esquecidas que o livrão me dizia que haviam existido: Carmen Barbosa, Jesy Barbosa, Alda Verona, Stefana de Macedo, Alzirinha Camargo, Otília Amorim, Marion, etc. Seria cansativo transcrever aqui o nome de todas essas artistas tão pouco conhecidas nas próprias épocas em que atuaram, quanto mais hoje em dia, mas para os curiosos, indico o www.cantorasdobrasil.com.br, MEU SITE. Estão todas lá.

Outro dia um conhecido, quando eu falei que estava ouvindo a Sônia Carvalho (outras dessas obscuras fantásticas) me falou que não tinha muito saco, por conta das gravações "estranhas". Respondi, não sem uma dose de impaciência, que adoro gravação fanhosa. Trata-se de meia verdade. Na verdade as gravações precárias me incomodam, não pela falta de tecnologia, mas pelo fato de possivelmente deformar os timbres como o eram - e basta ouvir uma gravação do início da carreira de Carmen Miranda com uma gravação dela feita em Holywood para confirmar que havia sim, uma diferença gritante entre a voz numa gravação de qualidade tecnológica melhor e as feitas no Brasil em início da década de 30. O que me incomoda é saber que a precariedade das gravações trazem até nossos ouvidos apenas uma idéia do que deveria ser a voz real daquela pessoa cantando ali, e nisso vem a certeza que muito da beleza dos timbres de voz se perdeu. Porém, por outro lado, vem novamente o prazer da pesquisa, o gosto pelo antigo e em "deter" algo que é praticamente só meu, uma vez que tão pouca gente conhece ou tem interesse em conhecer (apesar de vibrar ao encontrar outro doido que curta esse mesmo tipo de som). Para apreciar uma gravação antiga basta você se transportar para a época em que aquilo foi feito. Ora, se na década de 30 vendiam-se discos com aquela qualidade tecnológica precária e as músicas faziam sucesso, é claro que havia o interesse, era possível gostar daquilo daquela forma. Rita Lee em uma entrevista, ao ser questionada sobre a idade, disse uma coisa genial: que ela podia ter todas as idades que já teve antes. Basta tirar do bolso e ser uma criança, uma mulher de 30, o que for. Penso que ouvir uma gravação antiga (ou ver um filme mudo, ler um livro de Machado de Assis, etc) é mais ou menos fazer o mesmo que a Rita descreve. Não é por que hoje temos a tecnologia digital de som puríssimo, que não posso fingir que não sei da existência dela, e ter prazer estético com ouvidos da década de 20 ou 30, ou mesmo de antes. Basta fazer como Rita e me trasportar para uma outra época, desprovido dos conceitos do tempo de agora, vestir uma fantasia e viajar para o passado. Foi assim que descobri o imenso prazer que é escutar aquelas deliciosas gravações "fanhosas" e conhecer as adoráveis "obscuras da MPB".

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