24 de dez. de 2013

ENTREVISTA COM JUSSARA SILVEIRA

Jussara Silveira nasceu em Minas Gerais, mas é baiana. É baiana no jeito cool com que conduz sua vida e carreira. Mas sob essa personalidade suave se esconde uma cantora de emoção intensa, capaz de dar sentido às letras mais densas com a tranquilidade mansa de uma das herdeiras de João Gilberto. É aquele tipo de cantora que não precisa do grito. Sua emoção se faz presente no marejar dos olhos, no jeito como projeta a voz (Teresa Cristina definiu em uma entrevista recente como "voz de choro"), no movimento suave e discreto do corpo e das mãos.

Considero Jussara Silveira uma cantora extraordinária. Literalmente. Ela é como poucas. Poucas são as cantoras tão precisamente afinadas e ao mesmo tempo tão "sentimento". Poucas são aquelas que têm uma trajetória tão coerente, límpida e de bom gosto. Poucas cantoras do Brasil teriam o sentimento adequado para fazer um disco que, não sendo apenas fado, é baseado no fado. E Jussara acaba de lançar o belo "Água Lusa", no qual canta composições letradas pelo poeta português Tiago Torres da Silva. Mais um belo azulejo no painel da carreira dessa cantora tão baiana, tão brasileira, e, quem diria, tão portuguesa.

Foi com grande alegria de minha parte que Jussara concedeu-me por e-mail essa entrevista falando de "Água Lusa" e de sua carreira. Com a mesma gentileza e doçura de nosso rápido encontro nas ruas no carnaval de anos atrás.
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DOUG CARVALHO: Jussara, você vem de uma fase muito produtiva em termos discográficos. Em 2011 você gravou dois discos, o “Ame ou Se mande” e o “Flor Bailarina”, no qual você canta somente canções de compositores angolanos. Agora você está lançando o “Água Lusa”, que é focado na música portuguesa. Como surgiu a ideia de fazer esse disco?   

JUSSARA SILVEIRA: A ideia de fazer um disco com Tiago Torres da Silva é anterior aos discos "Ame ou se Mande" e "Flor Bailarina", mas comecemos pelo começo: eu não gravava há quatro anos, quando resolvi convidar Marcelo Costa (baterista) e Sacha Amback (pianista) para  montarmos um show com essa formação diferente do que eu costumava fazer... Este encontro se desdobrou na gravação em estúdio do "Ame Ou Se Mande", e em seguida, ao escutar o som desse disco, o fotógrafo Sérgio Guerra, sugeriu que gravássemos as canções angolanas nessa mesma formação, fizemos o "Flor Bailarina", e o resultado me pareceu muito interessante... durante todo esse tempo, Tiago e eu trocamos ideias sobre o nosso disco e em 2011 brindamos com Pedro Jóia, em Lisboa, o disco que faríamos juntos; o brinde foi forte e justamente um ano depois fui fazer uma Residência Artística em Lisboa - através de um Programa da Secretaria de Cultura da Bahia e durante este período tivemos a oportunidade de gravar o "Água Lusa", com o lastro do Tiago e Jóia no comando, e o meu desejo de cantar essas canções e esses fados, que tentei decifrar durante toda a vida, e ao mesmo tempo, os três discos lançados pela Dubas Música/Universal, a cada ano, formam entre si uma trilogia lusófona e não há nada melhor do que fazer música em língua portuguesa. Eu garanto.

DC: Desde seu primeiro disco você já namora um pouco com o fado, que é um gênero que volta e meia aparece em seu repertório. Música portuguesa, fado em especial, já era uma referência para você?  


JS: Reverencio o Fado desde que escutei Amália Rodrigues pela primeira vez ao 10 anos de idade e desde o meu primeiro show faço referência ao  fado, à canção portuguesa, ou algo da canção brasileira que nos remeta ao mundo luso, como é o caso de "Orientação", de Tuzé de Abreu, gravada no meu primeiro disco, ou a gravação de "Fria Claridade", ou ainda a música do Zé Miguel Wisnik sobre poema de Fernando  Pessoa, a intrigante "Tenho Dó das Estrelas". 

DC: A música portuguesa já foi muito popular no Brasil, principalmente na década de 50. Nessa época algumas cantoras portuguesas chegaram a morar e fazer carreira de sucesso no Brasil, como as irmãs Ester de Abreu e Gilda Valença, sem contar a própria Amália Rodrigues. Hoje em dia, apesar de alguns artistas, como a fadista Mariza, terem carreiras internacionais consagradas, o público brasileiro de modo geral anda muito refratário à música portuguesa, apesar da qualidade do que é produzido em Portugal. Os artistas lusos atuais são pouco conhecidos aqui, apesar de termos a mesma língua. Você arriscaria atribuir esse fato a algum motivo específico?

JS: Olha, é bem verdade que durante muito tempo, a cena brasileira P
ortugal sempre foi mais forte que o contrário, mas é evidente que a cena tem mudado bastante e no momento muitos artistas portugueses novos, como Carminho, António Zambujo, entre outros, fazem shows aqui no Brasil e em conversa com amigos, percebo o quanto eles têm se voltado para a canção portuguesa e para o Fado. Atualmente há muitas parcerias entre brasileiros e portugueses e penso que o Tiago Torres da Silva é pioneiro e incentiva bastante essas parcerias.  Da minha parte adoraria trazer meus fadistas de predileção para cantarem no Brasil e retribuir tudo que aprendi com o canto profundo do fado; cantores como Maria João Quadros, Camané, e fadistas de sempre: Beatriz da Conceição, Celeste Rodrigues, Teresa Tarouca, Argentina dos Santos... "tudo isto é Fado." 


DC: Na letra de “Na companhia de fadistas” você canta “Talvez não seja aceite entre os puristas / Talvez pensem que eu não tenho direito”. De fato há puristas do fado que costumam ser muito exigentes. Por outro lado o público português costuma ser muito aberto a MPB. Você chega de fato a se preocupar que seu disco seja aceito pelos puristas?

JS: Esta preocupação só existe na canção, e nem isso, pois é somente um "talvez". Há tantas controvérsias no fado e entre os fadistas, que jamais me colocaria em alguma discussão. O que faço é tão somente uma visita ao fado e à canção em língua portuguesa, meu assunto predileto.
 


DC: Apesar de não ter sido a primeira gravação, considero sua versão de “Dama do Cassino”, de Caetano Veloso, definitiva. É seu maior sucesso, e o público sempre pede nos shows – eu mesmo sou um dos que pedem! (RS). Você ainda canta com o mesmo prazer ou sente uma vontade de deixar ela guardadinha no guarda-roupas de vez em quando?

JS: Adoro cantar "Dama do Cassino", pérola recolhida do repertório de Ney Matogrosso, como  também o "Fado menor do porto", "Sereia", gravado lindamente por ele, e que está no "Água Lusa".

DC: Em 2008 você se juntou a Teresa Cristina e Rita Benneditto e fizeram o show “Três Meninas do Brasil”, que virou DVD. Gosto muito desse trabalho, mas o show não chegou a viajar todo o país. Ainda haveria vontade de, quem sabe, trazê-lo a Salvador, que afinal, é sua cidade, mesmo que nunca tenha sido discutido isso com as outras duas “meninas”? 

JS: Era realmente um trabalho para rodar pelo Brasil e no entanto, fizemos uns poucos shows e com o formato definitivo do DVD, me parece que "as meninas" preferiram cuidar de suas carreiras; já lamentei um pouco junto com as pessoas que queriam ver o show ao vivo, aqui e acolá... mas já passou e temos ai o DVD e a amizade que me une a Rita e Teresa.  

DC: O mercado musical de hoje é complicado. Existe a questão da pirataria e do jabá. Pra tocar no rádio o artista tem que ser contratado de uma grande gravadora ou já ser muito conhecido. Como é para você divulgar o seu trabalho no Brasil inteiro? E a questão da internet (inclusive o download) ajuda ou atrapalha?

JS: Acho que o foco agora é no mundo digital. Eu como não sou autora, não posso autorizar que se baixe nada gratuito... mas sei que se faz muito download, acho que ajuda da divulgação, mas quem quer algo de qualidade mesmo, tem que comprar.
 


DC: Essa entrevista é para o blog de um site sobre Cantoras. Quem são as cantoras que te influenciaram e quais você costuma ouvir em casa? 

JS: As minhas cantoras sempre: Nana Caymmi, Gal Costa, Maria Bethânia, Billie Holliday, Ná Ozzetti, Numa Ciro, Mariana de Moraes, Cássia Eller, Amália Rodrigues, Maria João Quadros...nossa senhora, são tantas amadas cantoras, umas novíssimas como Julia Vargas. Adoro! 

DC: Gostaria de agradecer imensamente sua disponibilidade em responder essa entrevista, e, para finalizar, deixo aberto esse espaço para você dar seu recado para o seu público e o público do blog.

JS: Doug, parabéns pelo blog e pela dedicação às cantoras. Foi ótimo falar contigo e com o público do Cantoras do Brasil. Espero brevemente voltar à Salvador com o show do "Água Lusa".  Que a estrela do Menino Jesus nos ilumine a todos. Beijos Lusos-Natalinos. Jussara Silveira.


***
(Talvez blindado em minha natural timidez pelo fato da entrevista ser por e-mail, não resisti em dar uma de tiete e contar uma historinha pessoal a Jussara e pedir que ela mandasse um recado para um amigo. Peço a devida licença aqui aos leitores do blog para ser um pouco menos jornalista e um bocadinho mais fã!)

DC: A alguns anos atrás um grande amigo que tinha passado alguns anos residindo nos Estados Unidos voltou achando que a MPB estava estagnada. Bati o pé dizendo que não, e mostrei o trabalho de alguns artistas que ele não conhecia, principalmente o de Ná Ozzetti e o seu, e ele acabou tornando-se um grande fã de ambas. Como moramos em Salvador ele dizia que no dia que encontrasse você na rua iria pedir um beijo, e tal encontro aconteceu em pleno carnaval, no Bloco dos Mascarados da Margareth Menezes. Eu falei para ele, “A Jussara Silveira está aqui atrás de nós. Você não vai dar o beijo dela não?”, achando eu que ele iria ficar tímido, mas ele foi, falou com você, deu o beijinho e eu te contei essa história de ter apresentado seu trabalho. Lembro como hoje você me respondendo “BOA!” (risos). Possivelmente você não vai lembrar desse acontecido de tantos anos atrás, mas você poderia, por favor, mandar outro beijo para o meu amigo? O nome dele é Angelo Augusto, e ele continua seu grande fã!

JS:
Oi Angelo Augusto, um grande beijo pra você, para comemorar o inesquecível beijinho, no bloco Mascarados. Você se lembra da minha fantasia? 


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GOSTARIA DE AGRADECER IMENSAMENTE À GENEROSIDADE E DISPONIBILIDADE DE JUSSARA SILVEIRA E TIAGO TORRES DA SILVA POR SUAS ENTREVISTAS E DESEJAR A AMBOS, AQUI E EM PÚBLICO, MUITO SUCESSO COM ESSE LINDO DISCO QUE É O "ÁGUA LUSA".

GRANDE ABRAÇO

DOUG CARVALHO

ENTREVISTA COM TIAGO TORRES DA SILVA

    



Autor teatral, poeta e letrista português, Tiago Torres da Silva tem letras gravadas por grandes nomes da música portuguesa e brasileira. Maria Bethânia, Olívia Byington, Ney Matogrosso, Alcione, Chico César, Elba Ramalho, Daniela Mercury, Seu Jorge, Fafá de Belém, Edson Cordeiro, Francis Hime, Marcos Sacramento, Joanna, Ná Ozzetti, Mônica Salmaso, Zélia Duncan, Rita Ribeir e Zeca Baleiro, no Brasil, além de grandes nomes da música portuguesa como Carminho, António Zambujo, Teresa Salgueiro, Sara Tavares, Dulce Pontes, Hélder Moutinho, Eugénia Mello e Castro, Maria Amélia Proença, Mafalda Arnauth, Teresa Tarouca e Né Ladeiras, são apenas os nomes mais conhecidos de cantores que já registraram canções letradas por ele.

Tiago é também o autor de todas as letras do recém lançado "Água Lusa", CD em que a cantora Jussara Silveira aborda a música portuguesa.

Tiago me concedeu essa entrevista no momento em que está de passagem pelo Brasil, falando de fado, de música brasileira, de mercado e de seu encontro com Jussara Silveira. Infelizmente não tivemos a oportunidade de conversarmos pessoalmente, mas para mim foi como se estivéssemos a comer sardinhas grelhadas na Alfama a ouvir o belo "Água Lusa": um grande privilégio.

DOUG CARVALHO: Tiago, você me contou recentemente ter uma grande predileção por música e cantoras brasileiras. Como você travou conhecimento com Jussara Silveira? 

TIAGO TORRES DA SILVA: Desde sempre escuto muita música brasileira, tenho por mestres Chico, Caetano, Milton, Paulo César Pinheiro entre muitos outros. Vivi a minha adolescência assistindo shows de Gal, Bethânia, Simone, Ney, Rita, Elba entre muitos outros. Por isso, foi natural começar a escrever para a chamada MPB. Tudo isso fez com que eu aprofundasse o meu conhecimento sobre a música do Brasil. Na safra de novas cantoras que fui descobrindo, Jussara se perfilou como uma das melhores. Um dia, ela foi fazer show a Lisboa e nos encontrámos. Foi amor à primeira vista. Logo ali começou a nascer a vontade de trabalharmos juntos. Isso materializou-se ao fim de alguns anos neste "Água Lusa" que tanta alegria me dá! 

DC: Como surgiram os temas e as letras escritas para “Água Lusa”? 

TTS: "Água lusa" é um disco de retrospectiva. Muitas das canções foram grandes sucessos na minha carreira. É o caso de "Voltarei à minha terra", sucesso na voz de Tereza Salgueiro ou "O mar fala de ti", sucesso na voz de Mafalda Arnauth. O único tema escrito para esse disco foi "Na companhia de fadistas" e, na realidade, eu acho que o fato de Jussara ser uma cantora baiana levou-nos a escolher canções que se relacionassem com o mar. Isto é um bocadinho um "best of" dos meus 23 anos de carreira olhados pela emoção inteligente de Jussara. 

DC: A música brasileira tem uma grande penetração no mercado português, e algumas cantoras, como Joanna e Fafá de Belém, muito populares em Portugal, gravaram discos dedicados à música portuguesa. Eu tenho a impressão que esse carinho dos artistas brasileiro com a música portuguesa é muito bem aceito pelos portugueses. Você acredita que um disco como “Água Lusa” teria o poder de projetar o nome de Jussara Silveira em Portugal? 

TTS: Eu não sei te responder a isso. O mercado nos nossos países está muito estranho. Eu acho que deveria. Acho que Portugal se deveria alegrar porque, pela primeira vez, uma cantora brasileira dedica um cd inteiro à obra de um letrista português. Mas não sei. Espero que sim. Mas, eu já não estou entendendo nada do mercado. Por isso, faço o que o meu coração manda e deixo essa coisa do mercado para quem entende do assunto. 

DC: Apesar de termos a mesma língua, eu observo que, infelizmente, a música portuguesa não tem sido muito popular no Brasil como deveria. Observo, por exemplo, a carreira de Mariza, que é uma cantora de carreira internacional fortíssima, ser muito pouco conhecida no Brasil. A que você atribuiria isto? Acredita que existam medidas culturais que poderiam divulgar a cultura musical portuguesa mais profundamente no Brasil? 

TTS: Eu venho pro Brasil há 15 anos e, quando comecei a vir, todo mundo me falava que seria impossível penetrar no universo da música brasileira porque os "brasileiros têm preconceito com os portugueses e vice-versa". Nunca acreditei nisso e, ao fim de 15 anos, posso afirmar que é mentira: dirigi Bibi Ferreira. Fiz um disco inteiro com Olivia Byington. tenho parceria com meio mundo. As letras que escrevo foram gravadas por Bethânia, Ney Matogrosso, Alcione, Elba Ramalho, Daniela Mercury, Seu Jorge, Fafá de Belém, Zeca Baleiro, Mônica Salmaso, Joanna, Pedro Luis, Chico César, Francis Hime, Zélia Duncan, entre muitos outros. Acho que tem de se fazer e esquecer os preconceitos, ainda que saibamos que eles existam. Há dois dias estive no "Miranda" assistindo o show da espantosa Carminho e vi que o público brasileiro a recebe de braços abertos, como recebe o António Zambujo. Então, acho que temos de deixar de pensar no que não acontece e aplaudirmos o que acontece. Assim, as coisas vão melhorar. Em Portugal, a música brasileira também já conheceu melhores dias. Mas, eu acho que também tem um pouco a ver com a qualidade das coisas. Tem muita coisa no Brasil e em Portugal que pode até ser óptimo mas não tem uma coisa internacional que eu não sei bem dizer o que é. Quanto ao caso específico da Mariza, não sei dizer. Acho que ela é bem conhecida aqui. Acabou de vir para o Brasil há uns meses, fez show no Tom Brasil (SP) e na Barra em casa de show enormes. E tenho a certeza que lotaria sempre se os produtores assim decidissem, porque ela tem, como poucas, esse "não sei quê" internacional. 

DC: O fado, que é a base de “Água Lusa”, é o gênero musical português mais tradicional. Porém existe uma cena pop muito forte em Portugal. Como é a receptividade das gerações mais novas de Portugal ao fado? 

TTS: O fado é, mais ou menos, a base de "Água lusa". a verdade é que nós começámos pelo fado, mas, depois abrimos para outras formas musicais, até porque Jussara já cantava no show "entre o amor e o mar" uma canção minha (Uma canção por acaso) que não tem nada que ver com o fado. Mas você precisava ver Jussara numa casa de fado. Toda ela se transfigura. Parece que a alma dela lhe aflora aos olhos. E a gente pode ver como uma canção pode revelar tanto uma alma. Foi por isso que afirmei que Jussara é a mais portuguesa das cantoras brasileiras. É que ela entende o fado não com os ouvidos, nem sequer com o coração, é algo bem mais profundo. A cena pop em Portugal já foi mais forte. Nos anos 80 e início da década de 90, era mesmo muito forte. Hoje em dia, o fado ganhou um espaço na mídia e na atenção das gerações mais jovens muito, muito grande. Acho que se pode dizer que o fado está na moda. A geração mais jovem tem grandes instrumentistas, grandes letristas e grandes intérpretes como, para além dos 3 já citados, Camané, Ricardo Ribeiro, Ana Moura, Ana Sofia Varela, Gisela João, Pedro Moutinho, Marco Rodrigues, Joana Amendoeira, Carla Pires, Kátia Guerreiro entre muitos, muitos outros.

DC: Rui Veloso é um dos grandes astros da música portuguesa, e uma das melodias de “Água Lusa” é de autoria dele. Vocês são próximos e como surgiu “O nome do mar”?

TTS: Eu e o Rui colaboramos há muito tempo. Fizémos canções para Adelaide Ferreira, Simone de Oliveira... Eu adoro o Rui! Além de cantar magnificamente, é muitíssimo boa gente. É e será sempre uma alegria estar perto dele. "O nome do mar" foi uma canção que fizémos há muito tempo e estava no éter à procura do momento para aparecer ao mundo. Jussara é O momento para apresentar qualquer canção ao universo.

DC: O fado tradicional tem uma característica que acho fascinante, que é aquela história das 300 melodias que todo fadista tem que saber e que cada intérprete canta com letra diferente. O “Fado menor do Porto”, que foi sucesso de Amália Rodrigues com o nome de “Não é desgraça ser pobre” aparece no “Água Lusa” como “Sereia”, com letra nova feita por você. Essa letra foi feita especialmente para Jussara Silveira? E a intenção foi seguir a tradição fadista?

TTS: Não, não! Ninguém sabe todas as melodias do Fado tradicional, até porque há quem diga que são cento e poucas, há quem diga que são quatrocentas e tantas. Não se chega a um consenso. Mas, sim, existe um acervo de melodias que vão ganhando letras novas, à medida que os fadistas as vão cantando. Por exemplo "Estranha forma de vida" é cantado na música do "Fado bailado" que tem centenas de letras. Só que aquela foi mais forte e se impôs perante as outras. Em "Água lusa" temos quatro exemplos desses fados: "Fado margaridas", "Fado licas", "Fado Santa Luzia" e "Fado menor do porto" que foi sucesso na voz de Amália com essa letra que você citou e que era uma letra que Amália não era capaz de cantar sempre. Numa entrevista, ela falou que uma vez estava cantando esse fado e teve de parar porque o que se diz é tão forte que ela não poderia jamais terminar o fado, no estado de espírito em que se encontrava naquela noite. Gal Costa cantou belissimamente "Não é desgraça ser pobre" no show "O sorriso do gato de Alice". Pena não ter gravado. Agora, você não vai acreditar: "Sereia" que Jussara canta aqui nessa melodia tradicional do fado, foi escrita para... Ney Matogrosso, que a gravou incrivelmente há mais de 10 anos!

DC: Gostaria de agradecer imensamente sua disponibilidade em responder essa entrevista, e, para finalizar, deixo aberto esse espaço para você dar seu recado para o público do blog.

TTS: Eu é que agradeço pelo espaço concedido. Meu recado se prende com o momento atual. Acho importantíssima a existência desses blogues, desses canais dentro da net para divulgar trabalhos mais alternativos porque está difícil competir com uma mídia burra, sensacionalista e populista. O único poder que nos deixaram foi podermos escolher onde vamos colocar nosso dinheiro. As pessoas lamentam que os teatros fechem, que as livrarias encerrem, que os CDs vão acabar. Só tem uma forma de inverter essa tendência. É comprando discos, livros, indo ao teatro, etc. A cultura, somos nós que a fazemos e sempre que compramos um CD de qualidade, estamos fortalecendo a música de qualidade, estamos fortalecendo a existência daquele artista. Estamos honrando a memória daqueles que fizeram da MPB uma das melhores do mundo. Não pirateiem música. Comprem. Baixem no Itunes. Mas usem vosso poder para dizerem ao mundo que é possível subverter essa loucura capitalista que hoje em dia mata tudo que não for imediatamente um sucesso de vendas. No mais, sejam felizes e tenham um 2014 fantástico. Se lhes der vontade, vão procurar "Água Lusa" e se deliciem com o canto impressionante dessa que é uma grande cantora em qualquer parte do mundo. Muito me honra ouvir as palavras que escrevi na voz de Jussara Silveira.

23 de dez. de 2013

TOP 10 CANTORAS DO BRASIL 2013

Ainda não tive a oportunidade de ouvir todos os discos lançados por cantoras em 2013, alguns muito bem tratados pela crítica, por isso esse ranking dos meus 10 favoritos não pode ser considerado definitivo. É apenas a minha impressão, nesse final de ano, de quem foram as cantoras que fizeram os discos dos quais eu mais gostei.

10 - SER DE LUZ - MARIENE DE CASTRO
 
A cantora baiana em 2013 finalmente atingiu o reconhecimento nacional definitivo. Apesar de ser uma homenagem reverente a Clara Nunes, Mariene de Castro deixou claro que é uma cantora com brilho e qualidade própria e semeou seu caminho definitivo no mundo do samba. Agora basta colher os frutos.

9- VANESSA DA MATA CANTA TOM JOBIM
Em 2013 Vanessa da Mata foi a estrela de show patrocinado pela Nívea em homenagem a Tom Jobim. Apesar de criticado pelos puristas, a cantora fez um belo disco, fiel ao estilo apolíneo da música de Tom Jobim, mas sem deixar de trazer a música do Maestro Soberano para seu próprio universo musical, ao mesmo tempo pop e rural.

8 - FELIZ DA VIDA! - ANGELA RO RO
Definitivamente os dias malditos de fossa ficaram para trás. Angela Ro Ro agora é uma artista solar, que estampa o sorriso leve na capa de um disco com cheiro de mar, sol e brisa. Feliz da Vida! é um CD leve e bonito, com boas canções que captam com perfeição a jeito praiano do Rio Zona Sul. Para rolar no i-pod num passeio pela ciclovia de Ipanema.

7- É MELHOR SER - SIMONE
Simone está completando 40 anos de carreira e para comemorar fez um CD de repertório formado somente por músicas das melhores compositoras surgidas nesses 40 anos. Um disco despretensioso, mas ótimo, com a cantora baiana mostrando ótima forma vocal em seu estilo de cantar pessoal e maduro.

6 - CARTA DE AMOR - MARIA BETHÂNIA
Maria Bethânia continua uma artista surpreendente. A cada ano cantando melhor, não precisa mais provar nada a ninguém, e num registro de um show menos memorável em sua brilhante trajetória, com repertório em sua quase totalidade já gravado por ela anteriormente, ainda assim fez um disco extraordinário. Um disco de uma artista cada vez mais dona de si e de sua arte.

5 - ETERNA ALEGRIA - ALCIONE
A Marrom no decorrer de sua carreira escorregou em repertórios pouco inspirados, mas outras vezes ela acertou em cheio. E quando Alcione acerta, não tem para onde fugir, ela faz discos excelentes. É o caso desse ótimo CD de sambas, com a cantora cantando cada vez cantando melhor, senhora de sua voz, já um pouco mais suja com a idade, mas tirando partido do que poderia ser um defeito para outras artistas menos tarimbadas. Mas com Alcione é só eterna alegria.

4 - TOTATIANDO - ZÉLIA DUNCAN
Totatiando não foi lançado em CD, apenas em DVD. É o registro do show músico teatral em que Zélia Duncan interpreta somente músicas compostas (ou cantadas) por Luiz Tatit. Zélia deixou claríssimo nesse espetáculo a grande artista que é, não apenas como ótima compositora e dona de voz personalíssima, mas também como grande intérprete.

3- EMBALAR - NÁ OZZETTI
Ótima cantora, Ná Ozzetti é também uma compositora criativa e original. Versátil, Ná pode ser clássica, mas pode ser também inventiva e modernete quando quer, como nesse ótimo CD de repertório 100% inédito, onde, mais uma vez, a cantora coloca sua belíssima e precisa voz no posto de uma das melhores do país.

2 - ÁGUA LUSA - JUSSARA SILVEIRA
O novo CD de Jussara Silveira nos mostra o motivo pelo qual a cantora mineiro-baiana é considerada por Tiago Torres da Silva, porta português autor de todas as letras do CD, a cantora brasileira mais cheia de portucalidade. Cantando principalmente fados, Jussara fez um disco lindo, reverente e respeitoso ao mais típicos dos gêneros musicais portugueses, mais ainda assim coerente com a brasilidade e estilo suave da "dama do cassino".

1- RECANTO AO VIVO - GAL COSTA
Recanto Ao Vivo nada mais é que o registro em DVD e Cd do show que Gal Costa realizou em 2012, e seria somente isso não fosse por alguns motivos: o show era excelente e retirou Gal de anos de shows repetitivos e pouco inventivos, e a recolocou no posto de grande dama da MPB. Poderia parar por aí, mas no disco ao vivo, o repertório inédito que já era ótimo no CD de estúdio anterior criou corpo e vida, e fez Gal desabrochar, com voz belíssima e inteira, num dos grandes shows de sua carreira.

16 de dez. de 2013

Jussara Silveira e sua viagem pela "Água Lusa"

1. Na Companhia de Fadistas (Fado Margaridas) (Miguel ramos / Thiago Torres da Silva)
2. Vou Num Rio (Fado Licas) (Armando Machado / Thiago Torres da Silva)
3. Meu Amor Abre A Janela (Fado Santa Luzia) (Armando Machado / Thiago Torres da Silva)
4. O Mar Fala de Ti (Ernesto Leite / Thiago Torres da Silva)
5. Cantiga do Ladrão (Rão Kyao / Thiago Torres da Silva)
6. Voltarei À Minha Terra (Armandinho / Thiago Torres da Silva)
7. Uma Canção Por Acaso (Pedro Jóia / Thiago Torres da Silva)
8. Beijo Alentejano (Carlos Gonçalves / Thiago Torres da Silva)
9. O Nome do Mar (Rui Veloso / Thiago Torres da Silva)
10. Sereia (Fado Menor do Porto) (Jaime Cavalheiro / Thiago Torres da Silva)
11. Quase A Amanhecer (Pedro Jóia / Thiago Torres da Silva)


A muitos anos que considero Jussara Silveira uma das melhores cantoras brasileiras, numa lista de 5 ou 6. Dona de fina sensibilidade, a baiana nascida em Minas Gerais criou uma trajetória de coerência e bom gosto e mesmo sem ter se tornado uma mega-star, adquiriu prestígio e o patamar de cantora de nível nacional.

Jussara iniciou a carreira na década de 80, foi vocalista de Caetano Veloso, cantou em trio elétrico, mas seu temperamento e voz cool a levaram a construir sua trajetória longe da eletricidade do carnaval baiano. Estreou em disco em 1997, num disco em que já apareciam sugestões de um namoro com a música portuguesa, no fadinho baiano “Orientação”, de Tuzé de Abreu, onde numa letra sintética ela cantava “Lá na alma da gente tem um lugar um tempo bom, é preciso seguir o farol”. Gravou Dorival Caymmi em 1998 no belo disco “Canções de Caymmi”, e voltou a namorar com o fado em “Jussara” de 2002, nas gravações de “Fria claridade” (JM Amaral / PH de Melo) e “Caravela” (Maurício Pacheco). 

Sua discografia impecável conta ainda com os discos “Nobreza” e “Entre O Amor E O Mar” (ambos de 2006), “Três Meninas do Brasil” (2008), inesquecível encontro com Teresa Cristina e Rita Benneditto (ex-Ribeiro), “Ame Ou Se Mande” (onde mais uma vez há um namoro com Portugal na canção “Tenho dó das estrelas”, poema de Fernando Pessoa musicado por José Miguel Wisnik) e “Flor Bailarina” (ambos de 2011).

Artista do jeito doce (não a conheço pessoalmente, mas conheço pessoas que a conhecem, e essa é a opinião unânime), Jussara flertou com Angola no clipe de “A Volta de Xanduzinha” (TomZé), do disco de 2002 e em um disco inteiro dedicado à música deste país africano, o belo “Flor Bailarina”.

Agora Jussara completa sua volta ao mundo musical lusófono e lança “Água Lusa”, um disco no qual a cantora interpreta composições portuguesas, todas elas letradas pelo poeta português Tiago Torres da Silva.

Assim como o fez em “Flor bailarina”, Jussara empresta sua sensibilidade interpretativa ao fado, sem jamais deixar de ser baiana em essência. A primeira faixa do disco dá o recado numa letra em que Jussara se dirige aos puristas e tradicionalistas e pede licença e perdão para cantar o mais tradicional dos gêneros portugueses:


Na Companhia de Fadistas (Fado Margaridas)
(Miguel Ramos / Thiago Torres da Silva)
 


“Não é por ter amado o fado antigo
Que eu já posso dizer que sou fadista
Mas por lhe ter amor é que eu te digo
Que o fado fez em mim nova conquista
Mas por lhe ter amor é que eu te digo
Que o fado fez em mim nova conquista


Não sei o que há no Fado Margaridas
Que choram ao mesmo tempo que sorriem
Descubro neste fado tantas vidas
Que já nem sei dizer quantas vivi
Não sei o que há no Fado Margaridas
Que choram ao mesmo tempo que sorriem 

Talvez não seja aceite entre puristas
Talvez pensem que eu não tenho direito
Mas é na companhia de fadistas
Que eu sinto a vida a latejar no peito
Mas é na companhia de fadistas
Que eu sinto a vida a latejar no peito

Sei que não sou do fado por nascença
E só o posso ser por condição
Por isso ao começar peço licença
E assim que terminar peço perdão
Por isso ao começar peço licença
Mas só o posso amar de coração.”

Mesmo sem ser tradicional como Amália Rodrigues ou dramática como Mariza, as duas maiores cantoras de fado - a maior de todos os tempos e a maior da atualidade -, Jussara não perde de vista as características peculiares do gênero. Uma certa melancolia, um sentimento de saudosismo permeiam todo o disco. Mas Jussara em nenhum momento faz um pastiche de cantora de fado. É uma cantora brasileiríssima, que ousa, por exemplo, inserir uma batida de samba em “Uma Canção Por Acaso”. No disco também está presente uma composição de um dos maiores astros da música de Portugal, Rui Veloso, que contribuiu com “O Nome do Mar”. Até mesmo um procedimento comum no mundo do fado, a utilização de uma melodia famosa com letra especialmente feita para a cantora, está presente no disco. O “Fado Menor do Porto” aparece no disco de Jussara com poema de Tiago Torres da Silva como “Sereia”. Trata-se de um dos clássicos do repertório fadístico, já gravado pelas mesmas Amália (um dos grandes sucessos desta, “Não é desgraça ser pobre”) e Mariza (“Meus olhos que por alguém”, do CD “Fado Tradicional”, mais recente de Mariza, lançado em 2010). 

De estilo muito peculiar (cujo timbre de voz evoca eventualmente o de Gal Costa), Jussara empresta sua alma brasileira, ao mesmo tempo intimista e intensa, ao que há de mais bonito da música portuguesa.









2 de dez. de 2013

"Barco negro", a canção brasileira que se tornou um clássico de Portugal.


 O cantor e compositor Caco Velho

Em 2011 estive em Portugal pela primeira vez. Foi paixão a primeira vista. A luminosidade, o cheiro do Tejo, a comida deliciosa, a simpatia cortês e reservada dos portugueses. A música portuguesa!

Obviamente eu já conhecia alguns clássicos da música portuguesa, a grande maioria fados eternizados pela voz de Amália Rodrigues. Porém a verdade é que para a minha geração talvez a figura de Amália seja apenas um nome eventualmente falado e pouco ouvido. Aliás, a música portuguesa de modo geral é muito pouco prestigiada por nós, brasileiros, apesar de sua qualidade e mesmo idioma.

A partir dessa primeira viagem a Portugal eu conheci o trabalho da maior fadista da atualidade. Trata-se de Mariza, a mais importante cantora viva de Portugal, popularíssima não apenas em terras lusas, mas que realiza frequentes concertos em diversas partes do mundo. Talvez Mariza seja dentre as cantoras não brasileiras a que eu mais gosto. Tenho todos os seus discos, DVDs e assisti a dois shows seus, um em Portugal e um no Rio de Janeiro. Considero-a uma das maiores cantoras vivas da atualidade.

Mariza canta "Barco negro"

Uma das canções gravadas por Mariza chama-se "Barco negro". Trata-se de um tema que fala de uma mulher que chora na praia ao ver seu homem partir em um barco negro ao passo em que as mulheres mais velhas da praia dizem para ela que ele não mais voltará. "Barco negro" é, na realidade, um dos maiores sucessos da carreira de Amália Rodrigues, e Mariza o regravou.

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que "Barco negro" é na realidade uma composição brasileira do famoso sambista Caco Velho parceria dele com um compositor desconhecido de nome Piratini. 

"Mãe preta", com o Quarteto Tocantins. Gravação de 1943

Em 1943 o pouco famoso grupo Quarteto Tocantins gravou a toada "Mãe preta", uma música que falava em uma mãe de leite escrava que dá de mamar ao filho branco do senhor enquanto seu próprio filho apanha na senzala. Essa música pouco conhecida (não chegou a ser sucesso e o próprio Quarteto Tocantins gravou poucos discos após essa gravação) acabou caindo nas graças da fadista Maria da Conceição e foi gravada em Portugal em 1955, fazendo grande sucesso. Porém era o período da ditadura fascista de Salazar e a letra falando em escravidão não agradou ao governo, que tratou de proibi-la.


Uma das principais características do fado é que para uma mesma melodia existem várias letras diferentes e cada cantor pode interpretar uma mesma música com poemas totalmente diferentes. talvez pensando nisso o letrista português David-Mourão Ferreira escreveu uma nova letra e "Mãe preta" se transformou em "Barco negro", sendo gravada então por Amália Rodrigues e se tornando um clássico da música portuguesa. Uma música tão célebre que acabou sendo regravada por diversos intérpretes em Portugal e no Brasil, como Ney Matogrosso (que a gravou duas vezes) e Joanna, num CD gravado ao vivo em Portugal.

"Barco negro - Amália Rodrigues

Como um barco que parte de um porto e retorna anos depois, "Mãe preta" deixou o Brasil como uma música pouco conhecida para se tornar a clássica "Barco negro" no outro lado do oceano e retornar até nós (e até mim) como uma das mais fiéis representantes da música portuguesa.

Uma linda música com uma história pitoresca que gostaria de dividir com quem possa ler esse texto.

Ney Matogrosso - "Barco negro"

"Barco negro" - Joanna